2 de mai. de 2013

A doença incurável e a criança por Bernardo Kaliks


A história conta que a famosa violoncelista Jacqueline Mary du Pré falou, quando tinha 6 anos de idade, para a sua irmã Hilary: “não o contes para a mãe, mas, quando eu for grande não poderei mais andar nem me movimentar”. Aos 28 anos de idade ela adoeceu de uma Esclerose Multipla, interrompendo então a sua atividade musical quando se encontrava no esplendor da sua capacidade interpretativa, e veio a falecer com 42 anos de idade.

É notável este fato que não raramente é descrito em crianças, pelo qual elas olham para uma doença possivelmente incurável com uma equanimidade e uma tranquilidade que parece incompreensível perante o espaço de agitação e tragédia que se cria entre os familiares e amigos, numa postura diametralmente oposta. As doenças relacionadas com as neoplasias malignas (câncer, linfomas, leucemias) tem uma notável singularidade perante outras doenças crônicas graves: com frequência, quando acontecem nos adultos, elas geram a pergunta pelo sentido da doença. Não é raro ouvir de um paciente com câncer a expressão: “Doutor, eu sei porque eu adoeci desta doença”, e indagados pela razão eles podem relatar as vezes situações de stress perante as quais não conseguiram se colocar de uma maneira mais adequada, gerando assim um sofrimento permanente no espaço do qual pode aparecer a doença após alguns anos.

A criança que com seis, dez, doze anos, apresenta uma neoplasia maligna, as vezes de evolução mais agressiva e rápida que num adulto, eventualmente com uma resposta também mais difícil ao tratamento, nos formula uma pergunta muito mais complexa, pois a pergunta 
pelo sentido da doença com certeza não será respondida no panorama de uma vida tão curta, quase sem biografia, no sentido que comumente damos ao termo biografia. Mas, se insistirmos e procurarmos por um sentido, a observação e a reflexão pode nos levar a perceber e entender duas situações paralelas.

Numa delas nós temos uma vontade encarnatória intensa que fica truncada muito cedo. O fenômeno da encarnação do ser humano representa inicialmente um colossal esforço por atingir a postura ereta, a fala e a capacidade do pensar: Aos três anos de idade a criança configura as bases físicas destas características, próprias da condição humana, ela o faz porque processou a nível físico forças volitivas, que são forças absolutamente espirituais. Elas são as que criam a base física da ulterior vida terrestre. O que virá a ser representará uma metamorfose dessas forças volitivas da encarnação, acontecendo lentamente, através do aprendizado nos primeiros setênios, das andanças nos setênios seguintes e finalmente nas realizações na segunda metade da vida. Uma morte prematura deixa então forças volitivas poderosas, encarnatórias, à disposição da individualidade dessa criança, as quais, “somadas” 
agora àquelas próprias que se processarão para uma nova encarnação, são capazes de originar uma nova encarnação extraordinariamente rica em toda classe de talentos e realizações. Não raramente, segundo Rudolf Steiner, pessoas geniais tiveram uma morte muito prematura na encarnação anterior. 

A própria individualidade “se programa”, entre a morte e um novo nascimento, para algo assim, para essa morte prematura na encarnação seguinte, para assim ter à sua disposição forças volitivas mais intensas e realizar algo que tem a ver com um grande destino, agora numa encarnação ulterior.

A outra situação, paralela a esta, se processa no ambiente, entre os familiares e amigos que acompanharam este sofrimento. A tranquilidade, a serenidade que mostra a criança com uma doença como esta, quer, por si, inspirar uma transformação na alma das pessoas e familiares que a rodeiam. O pai ou a mãe, nos momentos do seu sofrimento, terão alguns momentos de assombro e de admiração perante essa serenidade, mais ainda, perante essa delicada e sagrada luminosidade, desaparecendo essa percepção no momento seguinte no meio de sentimentos de desespero, de raiva, e outras emoções semelhantes, todas elas absolutamente legitimas nessa situação. Mas esses momentos, a percepção dessa sagrada delicadeza, também no sofrimento da própria criança, ainda que as vezes apenas consciente, deixa uma marca na alma dos adultos, marca que com o tempo pode se tornar a fonte de uma grande transformação pela qual a pessoa pode se colocar de uma forma nova na vida, de uma maneira mais generosa, mais livre. Sim: uma doença assim, na criança, pode ter e tem um profundo significado para os adultos, para os pais, irmãos e amigos. Me lembro de meus anos de médico recém formado, quando acompanhei uma criança com uma grave doença: meu chefe, um dia, olhando de longe para os familiares que nesse momento se encontravam no jardim, falou mais ou menos assim: “essa é uma doença que não está no carma da criança, mas está no carma dos pais. E o que essas doenças podem trazer, justamente se processando dessa maneira, é o impulso para uma profunda transformação; são doenças cujo sentido está no futuro e não no passado”.

Evidentemente, ante essa afirmação eu fiquei quieto, pois estava envolvido e comovido pelo sofrimento dos pais. Mas os anos me ensinaram que essa segunda situação sempre se processará positivamente na vida das pessoas, em maior ou menor grau, sem apagar, evidentemente, a saudade pelo ente querido, mas, não raramente invocando um crescimento a partir dela.

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