Enquanto trabalhei na Escola Waldorf Rudolf Steiner de São Paulo como médica escolar, tive não somente a oportunidade, como também a felicidade de poder atuar em apresentações da peça de Natal por, aproximadamente, dezesseis anos. Durante os ensaios, e mesmo depois de apresentações, recebemos muitas contribuições valiosas de amigos experientes, para cada vez mais entendermos o verdadeiro significado do que representávamos, bem como sobre a postura mais adequada de alguns personagens. Aos poucos fui me aprofundando cada vez mais no tema. Em visita a Israel (logo depois do Natal de 1976) visitei todos os locais relacionados com a peça. No ano em que vivi na Alemanha (1979/80) comprei livros sobre as peças e procurei assistir a várias encenações, tentando assimilar o que cada uma tinha de particular para, depois de minha volta ao Brasil, poder contribuir com mais detalhes em nossas encenações.
Também foi nesse sentido que me ofereci a contribuir, neste ano (2008) com o grupo da Escola Travessia. Como já fazem quase 20 anos que não mais participo dessa peça, preparei-me relendo tudo o que havia estudado antigamente. Foi então que tive o impulso de escrever esse artigo, pois acredito que vários aspectos subjacentes às peças não estão mais tão vivos na consciência de quem delas participa, nem de quem as assiste.
Tive uma experiência muito triste quando, há dois anos, de visita aos Estados Unidos, onde uma de nossas filhas estava vivendo com sua família por meio ano, e meus netos estudando na Escola Waldorf local, tive a oportunidade de assistir uma peça natalina apresentada pelos professores. Estes acharam que era preciso modernizar e um deles escreveu uma nova peça.
O local da apresentação era uma igreja. Os “atores” entraram pela porta dos fundos, cobertos de peles de carneiro andando de quatro e balindo. O ‘pastor do rebanho’ era ‘modernoso’: usava roupa de ciclista, capacete, e vinha ‘dirigindo seu veículo’ tendo nas mãos apenas o guidão. Ele foi o narrador da história, na qual se falava do nascimento de uma criança; havia músicas de caráter nada devoto ou sagrado. Era impossível ter qualquer sentimento de veneração, de interiorização. Ao contrário, era a mais pura banalização. Não muito diferente foi o culto natalino ao qual pude assistir numa igreja de Heidelberg em 2005, no qual as crianças daquela comunidade religiosa apresentaram a peça natalina sob forma de musical, com partes faladas, onde, p. ex., José e Maria, ao chegarem a Belém, procuraram o ‘serviço de informações turísticas’ para saber onde havia alguma pousada... o pior de tudo foi notar que os adultos estavam achando tudo isso uma graça. As crianças do público, por seu lado, brincavam e corriam pela igreja, fazendo sua própria algazarra! Onde ficou o espírito natalino?
Aspectos gerais
Karl Julius Schröer (1825 – 1890), professor de literatura alemã e pesquisador de tradições populares que, por volta de 1855, vivia na cidade de Pressburg (atual Bratislava), situada entre Viena e Budapest, soube que, não longe dali, já na Hungria, apresentavam-se peças natalinas numa aldeia em uma pequena ilha no Rio Danúbio, chamada Oberufer. Nesse local viviam camponeses cujos ancestrais eram de origem alemã. Depois de assistir às apresentações ficou fascinado, pois percebeu estar diante de peças originais, autênticas, como eram apresentadas em algumas regiões da Alemanha no final da Idade Média, até os séculos XVI e XVII.
Em torno de 1880 Schröer foi professor de Rudolf Steiner na Escola Politécnica de Viena e lhe contou sobre essas peças natalinas. Reconhecendo seu valor, principalmente pelo fato de revelar algo da evolução espiritual da humanidade em determinada época, Steiner passou a apresentá-las em comemorações natalinas íntimas, já na primeira década do século XX, pelos amigos da então Sociedade Teosófica. Mais tarde elas foram (e ainda são) apresentadas todos os anos no Goetheanum, para um público bem mais amplo, e esse costume passou igualmente para todas as instituições antroposóficas (escolas, clínicas, fazendas biodinâmicas ², etc).
Histórias das peças natalinas
Na Idade Média o povo era iletrado, apenas o clero sabia ler e escrever. Os ofícios religiosos eram realizados em latim, ou seja, o povo nada se entendia do que se passava. Cenas de histórias bíblicas (tanto do Antigo quanto do Novo Testamento) eram pintadas nas paredes das igrejas, como forma de transmitir os conteúdos aos fiéis.
Nas formas iniciais do cristianismo ressaltava-se principalmente o sofrimento e a morte de Jesus Cristo, por esse motivo, durante o ano inteiro, durante as liturgias as oferendas eram dirigidas ao Cristo sofredor. Em outras palavras, em primeiro lugar foram a paixão e a morte na cruz que conquistaram o mundo. Somente mais tarde, e paulatinamente, deu-se espaço à criança, ao Menino-Jesus. Presume-se que a idéia de mostrar o ministério da criança – que preparava a descida da entidade Cristo para a Terra -, durante as missas de Natal, tenha vindo, senão do próprio São Francisco de Assis (1182-1226), com certeza de seus discípulos.
Inicialmente montava-se um presépio com figuras confeccionadas; mais tarde as figuras foram substituídas por padres, os quais, de forma muito simples, representavam os diferentes papéis. Somente a partir dos séculos XIII e XVI as comunidades de fiéis manifestaram o desejo de entender o que se passava ali e, depois, de participar ativamente do evento. Então, pouco a pouco, os autos passaram a ser apresentados no idioma regional e saíram do interior das igrejas. Para uma pessoa religiosa da Idade Média, a simples vivência de ‘ter embalado o menino Jesus em sua manjedoura’ preenchia sua alma de um sentimento de infinita sacralidade. De modo que, se de um lado essas peças religiosas representadas pelos sacerdotes deixaram as igrejas e se tornaram, por assim dizer, profanas, por serem apresentadas pelo povo em locais públicos, o intenso sentimento religioso desses ‘atores’ lhes devolvia seu aspecto sagrado. Foi assim que a idéia da criança sagrada vinda ao mundo penetrou no coração das pessoas mais simples. Pode-se dizer que, aos poucos, à medida que iam sendo apresentados, esses autos foram adquirindo um aspecto cada vez mais piedoso. De fato, pode-se considerar que, ao encenarem essas peças, os ‘atores’ estavam trazendo algo profundamente sagrado para a aldeia.
Pode-se notar que essas peças contém alguns aspectos rudes, até grotescos, outros são cômicos, plenos de humor, e que, por sua ingenuidade, ainda nos fazem sorrir hoje em dia.
Em algumas cenas as crianças divertem-se e riem muito, mas isso não macula o caráter sublime das peças. Muito pelo contrário, impede que se caia num sentimentalismo ou pieguismo. Isso corresponde plenamente à índole dos camponeses até os meados do século XIX: saber introduzir humor e, mesmo assim, expressa a total seriedade dos textos sagrados.
As “Peças natalinas de Oberufer”
No século XVI e início do XVII muitos camponeses alemães, pessoas simples e pobres, migraram para o oeste, assentando-se na Áustria e em algumas regiões da Hungria, constituindo assim ‘enclaves alemães’ nessas regiões (como já foi mencionado, Oberufer fica na Hungria). Enquanto nos locais de origem as tradições foram sofrendo alterações e ‘modernizações’, nos lugares afastados, sem vinculo com as regiões de onde provieram, mantiveram-se quase inalteradas. Isso vale para o dialeto falado, costumes e também, no caso, para as peças natalinas, zeladas com muita veneração.
Vários estudiosos debruçaram-se sobre esses autos em meados do século XIX, comparando as diversas tradições. Quando Schröer, um desses estudiosos, teve contato com as peças de Oberufer, percebeu que estava diante de algo ainda primordial. Conseguiu a confiança dos camponeses e publicou o resultado de suas pesquisas já em 1858. ³
Na época das investigações de Schröer o texto das peças estava nas mãos de um camponês, que o havia herdado de seu pai, assim como também ‘herdara’ dele a função de ‘mestre cantor’. Este tinha como responsabilidade zelar pelo manuscrito, escolher atores, ensaiar as peças, enfim, cuidar de tudo que dizia respeito a elas. Em geral esses mestres cantores eram pessoas de mais idade, muito respeitadas pela comunidade. Os manuscritos eram copiados, e quando Schröer teve acesso a eles, notou que em alguns deles faltavam alguns trechos. No entanto, as peças estavam tão vivas entre as pessoas, que um dos antigos mestres cantores, de memória, conseguiu reconstruir o texto todo.
Quando, no outono, a vindima e outras colheitas estavam terminadas, o mestre cantor escolhia alguns rapazes para começar os ensaios. Os papéis femininos eram representados por rapazes bem jovens. Essa escolha não era fácil, pois havia regras muito rígidas a serem cumpridas pelos participantes.
Durante todo o tempo dos ensaios e das apresentações, isto é, os meses de outono, novembro, dezembro e começo de janeiro, eles não podiam encontrar-se com mocinhas, não podiam cantar músicas banais, engraçadas, de zombaria, tinham de levar uma vida honrada (p. ex., era-lhes vedado o consumo de bebidas alcoólicas, fazer algazarra, xingar) e deviam total obediência ao mestre cantor. Nem sempre era fácil encontrar jovens dispostos a seguir essas regras durante tanto tempo. A partir de então copiava-se os textos, que tinham de ser decorados, e cantava-se as músicas das peças, e outras de caráter natalino. A proibição relativa às músicas banais era muito séria. Certa vez, a ‘companhia’ (Kumpanai) chegou a uma aldeia onde fora convidada para apresentar-se; ali foi recepcionada pela banda de música local. Os ‘atores’ sentiram-se ofendidos, e retiraram-se dizendo que não eram comediantes.
As apresentações aconteciam do primeiro advento até o dia de Reis, tanto na própria aldeia quanto em outras vizinhas, sempre aos domingos e às quarta-feiras, das 15 às 17 horas, na estalagem local. O público sentava-se em bancos ao longo de três paredes do recinto (em forma de ferradura) e os atores faziam a encenação no espaço central. Cobrava-se uma pequena entrada, para manter as roupas e outros apetrechos necessários. A seqüência das peças era a seguinte: primeiro “o nascimento de Jesus”, depois “Adão e Eva” e por último um auto de carnaval. Isso faz lembrar as antigas tragédias gregas, que sempre eram seguidas de uma peça satírica, engraçada. Somente na primeira apresentação dos autos natalinos não se encenava a peça de carnaval.
Enquanto os ‘atores’ se vestiam na estalagem, a figura do diabo (que tem um importante papel nas peças do Paraíso e dos reis magos), já vestida e maquiada, percorria a aldeia, olhava por toda porta e janela aberta e soprava um chifre de boi com muito alarde, convidando as pessoas para se dirigirem ao local da apresentação. Caso passasse uma carroça, ele pulava em cima dela e fazia o mesmo.
Os mesmos ‘atores’tinham papéis nas três peças, com exceção das figuras ‘santas’(Maria, José, o anjo, Deus), que não participavam da terceira peça (auto de carnaval). Além disso os papéis eram bem determinados, p. ex., o rei Melquior também fazia o papel de Deus, o rei Gaspar era Adão, Maria e Eva, etc.
Tendo em a simplicidade das pessoas e sua fé tão genuína, cabe ressaltar que as imagens eram da maior importância; as diferentes cenas assemelhavam-se a pinturas e seu visual era uma verdadeira obra de arte. Essas imagens tão belas penetravam profundamente na alma dos espectadores.
Outra característica significativa era o aspecto supra - confessional dessas apresentações, pois entre os “atores” havia católicos e protestantes, e adeptos dessas duas religiões estavam entre os espectadores. O padre e o pastor apoiavam plenamente essas encenações. Havia, no entanto, quem se opusesse a elas: era a”inteligência” da aldeia de oberufer, o prefeito, o juiz, um professor. Por sorte, nesses caso esses três cargos reuniam-se numa única pessoa.
As encenações atuais das “Peças natalinas de Oberufer”
Depois de Rudolf Steiner ter reconhecido a importância dessas peças, e começado a encená-las na época do Natal com pessoas que não eram atores, esse costume foi adotado por quase todas as instituições antroposóficas. Por exemplo, nas escolas Waldorf os professores as apresentam para os alunos, os pais, e toda a comunidade escolar; em clínicas antroposóficas são os médicos, enfermeiros, terapeutas, que as apresentam para os pacientes, seus familiares, e todos os funcionários da instituição, etc. Steiner introduziu algumas modificações, entre as quais as mais importantes são a exclusão da peça de carnaval, e o desdobramento de “O Nascimento de Jesus” em duas peças: dos pastores e dos reis magos. Desse modo ele respeitou o original bíblico, pois a história da anunciação feita pelo anjo a Maria, do casal Maria e José que viaja de Nazaré até Belém a fim de se recensear, quando então nasce seu filhinho num estábulo, por que não havia lugar na estalagem, e a posterior visita dos pastores, está descrita somente no Evangelho de Lucas. A história dos reis magos, que seguem uma estrela surgida no Oriente para visitar a criança nascida numa casa em Belém, cujo nascimento fora anunciado pelo anjo José e, depois, a fuga para o Egito e a posterior matança das crianças por Herodes, consta apenas no Evangelho de Mateus. Aliás, uma das maiores contribuições de Steiner foi a elucidação do fato de existirem duas histórias tão díspares para o que, tradicionalmente, é considerado o mesmo evento. Durante anos seguidos ele dedicou-se a revelar este e outros mistérios relacionados com o ser cósmico Cristo. Eles estão disponíveis na vasta obra deixada por ele, em livros e palestras.
Uma outra alteração está na ordem das apresentações, pois hoje, quando são encenadas as três peças, a primeira é a do Paraíso (“Adão e Eva”), depois a dos pastores (muitas vezes as duas vêm em seqüência, no mesmo dia), e por último, em outra data, a dos reis magos; muitas das instituições antroposóficas encenam as primeiras duas no período natalino propriamente dito, e a terceira no início de janeiro, ou até mesmo no dia de Reis (em escolas Waldorf do hemisfério norte, isso acontece no primeiro dia de aula depois das férias de Natal). As músicas cantadas hoje em dia também não são as originais. Para as primeiras apresentações Steiner encomendou a Leo van der Pals as melodias dos cantos e seus acompanhamentos. Mais recentemente, outros compositores também musicaram os textos; portanto há possibilidade de se escolher entre várias melodias. Obviamente os ‘atores’ atuais não precisam comprometer-se as regras vigentes até o séc. XIX, e os papéis femininos são representados por mulheres. Porém, sua atitude interior deve ser de plena consciência do significado da realidade oculta, subjacente a essas peças, levando em conta a importância das imagens sobre a alma dos espectadores, e principalmente o aspecto sagrado, sem pieguice e sentimentalismo.
As vezes, surge a questão se não fica tedioso apresentar todos os anos as mesmas peças. Ora, não se costuma considerar tedioso comemorar os aniversários todos os anos e, em geral, cada família tem seus costumes e tradições para festejá-los. Sabe-se que as crianças não apenas adoram, mas têm necessidade de repetições. Durante a apresentação das peças natalinas elas costumam aguardar com ansiedade a entrada desta ou daquela figura, são tomadas pela expectativa da cena que se aproxima e , em poucos anos, conseguem repetir muitas das falas e cantar todas as canções. Mesmo depois de adultas ainda se lembram de trechos, ou de ‘atores’ que viram várias vezes no mesmo papel. Em algumas famílias, na noite de Natal as próprias crianças condenam uma encenação improvisada da peça dos pastores, da qual toda a família acaba participando. Por vezes trata-se do único conteúdo verdadeiramente profundo nessa festa, que se tornou um evento comercial e social, sem religiosidade. Num mundo no qual se perderam as tradições, onde não há mais apego a nada, e tudo é descartável, manter a continuidade da encenação das peças natalinas pode significar não somente uma âncora, mas um momento de profunda veneração. E não apenas para as crianças, muitos adultos relatam-me que somente conseguem entrar no verdadeiro clima natalino depois, de assistirem às peças.
Como já foi mencionado, Steiner deu grande importância a essas apresentações, nem tanto por seu conteúdo, mas por representarem um resquício verdadeiramente genuíno da vida cultural entre os camponeses do final da Idade Média, que perdurou até meados do século XIX, extinguindo-se logo depois. Nos países de língua alemã as peças são encenadas no dialeto original, ainda bastante compreensível. Obviamente qualquer tradução intelectualiza o texto; por isso sempre se deve ter o cuidado de preservar o clima campesino, de ingenuidade, pureza e veneração. Então essas peças conseguem falar diretamente ao coração.
Bibliografia
Schröer, K.J.: Über die Oberuferer Weihnachtsspiele. Struttgart, Freies |Geistesleben, 1963.
Steiner, R.: Ansprachen zu den Weihnachtsspielen aus altem Volkstum. GA 274. Dornach, Rudolf Steiner Verlag, 1974
Obras de Rudolf Steiner sobre a Cristologia (GA correspondente ao número da Edição Geral das obras de Steiner)
O cristianismo como fato místico. GA 8. São Paulo, Antroposófica, 2ª. ed. 1996.
O Evangelho segundo Lucas. GA 114. São Paulo, Antroposófica, 2ª. ed. 1996.
O Evangelho segundo Mateus. GA 123. São Paulo, Antroposófica, 2ª. ed. 1997.
O Evangelho segundo Marcos. GA 139. São Paulo, Antroposófica, 1996.
O Evangelho segundo João. GA 112. São Paulo, Antroposófica, 2ª. ed. 1996.
De Jesus a Cristo. GA 131. São Paulo, Antroposófica, 1997.
O quinto Evangelho. GA 142. São Paulo, Antroposófica, 1996
O Apocalipse de João. GA 104. São Paulo, Antroposófica, 2003.
(Footnotes)
(Endnotes)¹ No inicio de 2009 este texto será introduzido no site da Sociedade Antroposófica no Brasil, na Seção de Antroposofia.
² poucos anos atrás, tive oportunidade de assistir uma apresentação comovente numa fazenda biodinâmica na Alemanha, onde a assim chamada ‘Peça dos Pastores’ foi encerrada no estábulo. O público estava sentado sobre blocos de feno comprimido, as vacas, no fundo, cuidavam de aquecer o recinto e, com seus mugidos, criar um clima pastoril.
³ Schröer, K.J.: “Deutsche Weihnachtsspiele aus Ungarn (1858) inÜber die Oberuferer Weihnachtsspiele Struttgart, Freies Geistesleben, 1963.
(texto extraído da Revista Nós, Época de Natal 2008, da Escola Waldorf Rudolf Steiner, em São Paulo)